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Porquê Tememos aos Cegos? - Rosemary Mahone


Há alguns anos, quando mencionei a uma mulher que conheci em uma festa que dava aulas em uma escola para cegos, ela pareceu confundida. "Posso fazer-te uma pergunta?


" - Disse. "Como falas com teus alunos?"


Expliquei-lhe que os estudantes eram cegos, não surdos. Levantando as palmas de suas mãos para mim, como para frisar ainda mais a incompreensão, ela disse:


"Sim, sei que não são surdos. Mas o que realmente quero dizer é: realmente falas com eles?"


Eu sabia, porque me havia sido feita esta pergunta antes por pessoas razoavelmente inteligentes, que a mulher não sabia exatamente o que queria dizer. O único que sabia era que em sua mente existia uma barreira intelectual substancial entre os cegos e os videntes. Os cegos podiam ouvir, sim. Mas podem entender corretamente?


Ao longo da história e em todas as culturas, os cegos têm sido denegridos por uma série de mitologias como esta. Têm sido percebidos de várias maneiras como idiotas lamentáveis, incapazes de aprender, como mestres engenhosos do engano, ou como místicos possuídos de poderes sobrenaturais. Um dos mitos mais persistentes sobre a cegueira é que ela é uma maldição de Deus pelas faltas cometidas numa vida passada, que encobre o cego na escuridão espiritual e o faz não só perigoso, e ainda malvado.


A maioria dos estudantes cegos no Instituto Internacional de Empreendedores Sociais (International Institute for Social Entrepreneurs), em Trivandrum (Índia), uma filial da Braille sem Fronteiras, veio do mundo em desenvolvimento: Vieram de Madagascar, Colômbia, Tibete, Libéria, Gana, Quênia, Nepal e da Índia. Um de meus alunos, de 27 anos de idade, Sahr, perdeu a maior parte de sua vista em decorrência do sarampo, quando era um menino. (Como muitos meninos das zonas rurais da África Ocidental, Sahr não havia sido vacinado.) Os residentes da aldeia de Sahr estavam seguros de que sua cegueira, sem dúvida, era o resultado de bruxaria ou de ações imorais por parte de sua família, e poderia afetar negativamente a toda a aldeia. Rodearam sua casa e gritaram ameaças e abusos. Confiscaram uma parte considerável da terra de seus pais. Com o tempo, os anciãos decretaram que o pai de Sahr deveria levar o menino à selva, "onde vivem os demônios, e abandoná-lo ali". Os pais se negaram e fugiram da aldeia com seu filho.


Muitos de meus alunos tiveram experiências similares. Os pais de Marco, devotos católicos colombianos, rogaram a um sacerdote que rezasse uma missa para que seu pequeno filho cego morresse antes de que sua existência trouxesse vergonha e dificuldades em seu lar. Os povoadores da remota aldeia tibetana de Kyile insistiram em que ela, seus dois irmãos cegos e seu pai cego deviam todos suicidar-se porque não eram mais que uma carga para os membros videntes da família. Quando, como menino em Serra Leoa, James começou a ver os objetos de cabeça para baixo por causa de uma enfermidade ocular, os aldeões estavam seguros de que ele estava possuído por demônios.


Nestes lugares, as escolas para meninos cegos eram consideradas uma perda absurda de recursos e de esforço. Os professores das escolas normais se negaram a educá-los. Meninos videntes os haviam ridicularizado, os enganaram, cuspiram e lhes jogaram pedras. E quando chegaram à idade de trabalhar, ninguém os contratou. Durante uma visita ao Centro de Treinamento do Braille Sem Fronteiras no Tibete, conheci os meninos cegos que haviam sido oprimidos, disseram que eram idiotas, foram encerrados em quartos por anos e anos e abandonados por seus pais.


Estes relatos que eram uma condição normal ou comum na Idade Média, tomaram lugar nos anos 1980, 1990 e 2000. Estão tomando lugar agora. Nove em cada 10 meninos cegos no mundo en desenvolvimento ainda não têm acesso à educação, muitos deles pela única razão de que são cegos.


Os Estados Unidos têm uma das taxas mais baixas de deficiência visual no mundo, e todavia a cegueira segue sendo uma das doenças físicas mais temidas. Inclusive neste país os cegos são percebidos como um povo à parte.


Existe aversão aos cegos pela mesma razão de que existe a maioria dos prejulgamentos: a falta de conhecimento. A ignorância é um potente gerador de temor. E o medo se converte facilmente em agressão e desprezo. Quem nunca passou mais de cinco minutos com uma pessoa cega poderia ser perdoado por crer - como a mulher que conheci na festa - que há um abismo intransponível entre nós e eles.


Para a maioria das pessoas a vista é a principal forma pela qual interpretamos o mundo. Como podemos sequer começar a pensar em uma conexão significativa com uma pessoa que não pode ver? Antes de começar a viver e trabalhar entre a gente cega, eu também me perguntei isso. Cada vez que via uma pessoa cega na rua ficava olhando, paralizado, com esperança, de um mal-estar vago e visceral, que não ia a ter que me comprometer com ele. Em 1930, em seu livro, "O Mundo dos Cegos", Pierre Villey, um professor francês cego de literatura, resumiu o carnaval aterrorizante dos prejulgamentos e superstições sobre os cegos que se transmite através dos séculos. "A pessoa vidente julga os cegos, não pelo que são, mas pelo temor que a cegueira inspira... A revolta de sua sensibilidade encarando "a mais atroz das enfermidades, enche uma pessoa vidente com prejulgamentos e dá lugar a milhares de lendas". A autora cega Georgina Kleege, conferencista da Universidade da Califórnia em Berkeley, mais concisamente escreveu:


"Os cegos são, ou sobrenaturais, ou sub-humanos, esquisitos ou animais."


Acostumamos-nos tanto com a visão que temos, nos aferramos a ela de modo servil, e estamos tão oprimidos pelos dados superficiais, que inclusive a pessoa vidente mais brilhante pode gastar um longo tempo, estupidamente, para reconhecer o óbvio: há, em geral, um perfeito estado de saúde, uma mente ativa humana normal por trás desse par de olhos que olham sem ver.


Christopher Hitchens chama a cegueira: "um dos transtornos mais antigos e mais trágicos conhecidos pelo homem". Como de excluídos horrivelmente, e carentes, nos sentiríamos ao perder o mundo e a forma de vida que a vista nos leva. A cegueira pode suceder a qualquer um de nós. Eu mesmo, cria estar seguro de que preferiria morrer antes que ser cego; não poderia imaginar como ia a ter a força para seguir adiante encarando essa perda.


E contudo a gente o faz. Em 1749, o filósofo francês Denis Diderot publicou uma composição, "Carta sobre os cegos para o benefício dos que veem", na qual descrevia uma visita que ele e um amigo fizeram à casa de um homem cego, filho de um professor de filosofia na Universidade de París. O homem cego se casou, teve um filho, tinha muitos conhecidos, estava versado em química e botânica, sabia ler e escrever com um alfabeto em relevo, e ganhava a vida destilando licores. Diderot escreveu con admiração do "bom sentido sólido" do homem, de sua ordem, de sua "surpreendente memória para sons" e vozes, de sua capacidade para dizer o peso de qualquer objeto e de qualquer vasilha simplesmente sustendo-os em suas mãos, de sua capacidade para desmontar e tornar a montar as máquinas pequenas, de sua agudeza musical e de sua extrema sensibilidade às mudanças atmosféricas.


O homem cego , talvez cansado de ser interrogado por Diderot e seu amigo como se fosse um animal de circo, com o tempo lhes fez uma pergunta


própria. "Percebo, senhores, que vocês não estão cegos. Estão é assombrados pelo que faço, e por que não pelo que expresso?" Mais do que qualquer de suas habilidades sensoriais, era a autoestima do homem cego que surpreendeu mais a Diderot. "Este homem cego", escreveu,


"valoriza-se tal como ou talvez mais do que nós, os que vemos".


Aprendi de meus amigos cegos e colegas que a cegueira não tem por que seguir sendo trágica. Para aqueles que podem adaptar-se a ela, a cegueira se converte num caminho a uma forma alternativa e igualmente rica da vida.


Uma das muitas ideias equivocadas sobre os cegos é que eles têm uma maior audição, um maior sentido do olfato e um maior sentido do tato que as pessoas videntes. Isso não é estritamente certo. Sua cegueira simplesmente lhes obriga a reconhecer os dons que sempre tiveram, mas até agora haviam ignorado em grande medida.


Há aluns anos, me permiti colocar uma venda nos olhos e fui levada pelas ruas de Lhasa por duas meninas cegas tibetanas adolescentes, estudantes do Braille Sem Fronteiras. As garotas não haviam crescido na cidade, e contudo a haviam atravessado com facilidade, sem tropeçar ou perder-se. Tinham um destino específico em mente, e a cada vez anunciavam: "Agora vamos à esquerda" ou "Agora giramos à direita", me vi obrigada a perguntar-lhes como sabiam isso. Suas respostas me surpreenderam, sobretudo porque as pistas que estavam seguindo eram o som de muitos televisores em uma loja de eletrodomésticos, o cheiro do couro duma sapataria, a sensação de paralelepípedos de repente sob os pés, mesmo que estivessem fora ao ar livre, para que qualquer um pudesse percebê-los, eram praticamente ocultos para mim.


Pela primeira vez em minha vida me dei conta do pouco caso que dava aos sons, aos cheiros, de fato, a todo o mundo que se estendia mais além de minha capacidade de ver.


O escritor francês, Jacques Lusseyran, que perdeu a visão na idade de 8 anos, entendeu que aqueles de nós que temos a visão estamos, em certo modo, privados pela mesma. "Em troca de todos os benefícios que traz a visão, nos vemos obrigados a renunciar a outros cuja existência nem sequer suspeitamos".


Não pretendo sugerir que há algo maravilhoso na cegueira. Só há algo maravilhoso na resistência humana, a adaptabilidade e a ousadia. Os cegos não são mais ou menos místicos, estúpidos, malvados, tristes, lamentáveis e enganosos que o resto de nós. É só nossa ignorância que os envolve nessas qualidades ridículas. Quando Helen Keller escreveu:


"É mais difícil ensinar a ignorância do que pensar em ensinar a um homem cego inteligente o ver a grandeza das Cataratas do Niágara", ela estava falando, obviamente, da elevação e da igualdade de valor do conhecimento.


Rosemary Mahone é a autora do livro da próxima aparição "Para benefício dos que veen: Envios do Mundo dos Cegos.


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