Acessibilidade em Foco!


A Melhor Namorada


Quando entrei na oficina de Loureiro, o elegante sapateiro decidiu encerrar o expediente, embora ainda estivéssemos no meio da tarde. Apreciador dos vinhos tintos e dos livros de filosofia, ele tinha no martelo e no alicate as ferramentas do seu ofício; as ideias com que coloria o mosaico da vida, os instrumentos da sua arte. A sua loja não tinha hora determinada para abrir ou fechar. O seu funcionamento variava de acordo com a vontade do artesão e, na pequena cidade, os horários inusitados da oficina já tinham virado uma lenda. Assistiríamos, os dois, em uma animada taberna, a uma partida de futebol pela TV. Era um dos aguardados jogos finais do campeonato. Loureiro achou que ainda dava tempo para conversar um pouco antes de irmos e foi passar um bule de café para animar as palavras. Quando ele colocou as duas canecas fumegantes sobre o balcão, fomos surpreendidos por um tornado em forma de gente. A irmã caçula do sapateiro invadiu a pequena oficina e nos dava a sensação de que o seu ímpeto abalava tudo a sua volta. Lucy era o seu nome. Há muito deixara de ser uma menina. Embora já tivesse mais de meio século de existência, ainda mantinha o viço da juventude. Seus olhos azuis contrastavam com a pele morena e os cabelos negros; era belíssima. Uma pessoa agradável no trato, atenciosa e boa amiga.

Muito dedicada aos estudos, tinha se tornado uma respeitável juíza de direito da região, o que lhe proporcionava, sob o aspecto financeiro, uma vida confortável. Apesar de tantos atributos, não era feliz. Um dos seus desejos era ter um casamento estável, ao lado de uma pessoa com quem pudesse compartilhar todos os momentos da vida. Embora com muitas qualidades pessoais, os seus relacionamentos afetivos eram efêmeros e, por motivo que não conseguia entender, não se sustentavam. Este era o motivo daquela visitava repentina, o seu último namorado acabara de encerrar o romance.

Estava agoniada. Tinha vindo em busca de entendimento. Loureiro pediu para que ela sentasse e lhe serviu uma xícara de café. De imediato, Lucy começou a desfiar uma enorme ladainha de incompreensões. Dizia, de modo sincero, que não entendia o motivo pelo qual todos os seus namorados rompiam o relacionamento. Sempre estava disposta a ajudar o companheiro em seus problemas pessoais, era amiga, leal, cuidadosa e intensa. Falou que conversava com as suas amigas e elas também não entendiam o motivo pelo qual os romances não vingaram. Todas a consideravam a namorada perfeita.

Como quem não quer nada, o artesão pediu: “Me fale um pouco, não de você, que conheço bem, mas dos seus namorados”. Em uma troca rápida de olhares com Loureiro, como velhos amigos, entendi a estratégia do sábio sapateiro: o coração fala mais sobre si quando revela o seu olhar sobre o outro. Lucy começou pelo último. Contou que ele era um grande empresário do ramo de supermercados, uma pessoa alegre e carinhosa, um homem rico e generoso, pois ajudava na manutenção de várias entidades filantrópicas. No entanto, respondia a um sério processo por sonegação fiscal. Explicou que ela, como juíza, não se sentia confortável em se relacionar com uma pessoa com tal problema e pediu muito a ele para que resolvesse a questão o quanto antes.

Chegou mesmo a se oferecer para conseguir um empréstimo bancário na tentativa de quitar a dívida ou, em caso extremo, cogitava se aposentar da magistratura, pois assim ficaria mais à vontade para se casarem.

Um outro namorado, anterior a esse, era um talentoso artista plástico, homem sensível e amoroso, com raro talento. As suas telas eram de grande beleza e a emocionavam. Confessou que não entendia como o seu trabalho nunca tinha interessado as grandes galerias internacionais. Ele tinha dificuldade em manter o próprio sustento, a venda dos quadros era escassa e limitada à feira pública na praça da cidade. Recebia uma ajuda do irmão, de quem era muito amigo, para complementar a renda. O irmão era conhecido por ser dono de um famoso e polêmico cabaré, que garantiam as más línguas, era um seguro canal para a prostituição. Embora o seu namorado não tivesse qualquer envolvimento com o negócio, aceitava uma mesada para o auxílio das suas despesas pessoais. Lucy o estimulou a voltar para a faculdade e terminar o curso de arquitetura que havia largado para se dedicar à pintura. Ele poderia morar com ela até se formar, o que reduziria as despesas e, depois de diplomado, poderia se valer do bom círculo de relacionamento dela para realizar os seus projetos e plantas. Apenas queria que o namorado criasse condições para não mais aceitar o dinheiro, de origem duvidosa, vindo do irmão.

Relatou, também, um outro relacionamento no qual o namorado era um dedicado médico que trabalhava em hospitais públicos. Tinha verdadeiro amor pela medicina e uma intensa paixão por curar. Um homem extraordinário, uma alma generosa e um bom amante, no pouquíssimo tempo que tinha disponível para namorar. Como ele tinha feito a opção em atender a parcela da população de baixo poder aquisitivo, trabalhava muito e ganhava pouco, ao menos se comparado com a possibilidade de ter um consultório próprio, onde poderia equilibrar melhor a relação entre tempo e remuneração. Ela não tinha duvida do sucesso que faria, pois ganhara muito conhecimento e experiência com a dedicação profissional e desprendimento material que tivera até aquele momento da vida. Toda a rotina corrida do médico o impedia de viajar, uma das grandes paixões de Lucy, seja pela falta de tempo ou de dinheiro, ao menos para os destinos mais caros e badalados desejados por ela. Se ofereceu para ajudar a montar um consultório para ele ou arcar com os custos das viagens que ela sonhava em fazer.

Na medida em que Lucy narrava as histórias, ficava claro que os relacionamentos terminaram após ela insistir em modificar a maneira como os namorados viviam. Por motivos diversos, seus estilos de vida a incomodavam.

Lucy estavas prestes a começar a relatar um outro romance quando o irmão fez um gesto suave com as mãos se declarando satisfeito. Em busca de aprovação, ela perguntou ao sapateiro se achava que estava errada. “Sim e não”, ele respondeu. Loureiro tomou um gole de café e falou: “Todos têm o direito de procurar a pessoa dos seus sonhos, aquela que irá se encaixar aos seus ideais de felicidade. Só não podem exigir que os outros se adequem aos seus conceitos de mundo ideal”.

A irmã protestou e disse que apenas ‘oferecia o seu melhor e, por isto, exigia o melhor do outro em troca’. O sapateiro logo observou: “Exatamente neste ponto me parece residir o problema. Pois, se ambos pensarem assim, podemos descambar em nefasta competição movida por orgulho para saber quem tem mais para oferecer e, logo, exigir compensações cada vez mais incabíveis”. Balançou a cabeça como quem diz que tudo estava errado e tentou explicar: “Penso que o amor para ser amor nos leva a oferecer o melhor que somos, sem exigir nada em retribuição. Ou não é amor. Quando não conseguimos sentir alegria no simples fato de ajudar na felicidade alheia e incluímos tributos em nossa oferta, o amor se desmancha no ar”. Deu de ombros, como um lamento, e disse: “Para viver o amor é preciso entender o amor”.

Ignorando a observação, ela alegou que o seu posicionamento era justo e, no mínimo, razoável. Loureiro arqueou as sobrancelhas como quem diz que aquela conversa não seria fácil e discordou com serenidade: “Não é justo nem razoável”, ante a expressão de espanto de Lucy, o artesão tratou de explicar: “Dividir o melhor de si é multiplicar o poder da luz que existe em você. Ao compartilhar a sua bagagem você ilumina os passos dos que estão perdidos, possibilita que aqueles que estão sentados na beira da estrada voltem a caminhar. Para tanto, é preciso abdicar do controle sobre os outros e da necessidade de qualquer tipo de retribuição, até mesmo de um simples agradecimento”. Deu uma pequena pausa e fez uma pergunta retórica: “Entende que não é justo nem razoável pedir nada em troca? A vida devolve bem mais quando oferecemos amorosamente o nosso melhor. Para tanto, qualquer auxílio precisa estar desligado da sensação de supremacia sobre o outro, de reverência, dependência ou qualquer cobrança. Ou será um triste exercício de vaidade e dominação. Quando você exige da outra pessoa uma determinada atitude em contrapartida, acaba por reduzir o amor à condição de um mero negócio e perde a leveza indispensável para se sustentar no ar. A felicidade não reside na construção de muros altos na tentativa de controlar o outro, mas de compartilhar com toda a gente a alegria de criar as próprias asas para atravessar os abismos da existência. O voo é solo, mas é lindo quando alguém pode nos acompanhar”.

Os olhos da irmã ficaram mareados e uma lágrima escorreu no belo rosto da mulher. Aos soluços, disse que sempre se esforçou para ser a melhor amiga dos seus namorados. Loureiro completou o raciocínio: “E acabou por se tornar a pior namorada”. Deu uma pequena pausa e prosseguiu: “Você foi grande quando ofereceu o seu melhor e o que entendia ser o melhor para eles. Neste instante o Céu entrou em festa. Tudo se perdeu quando exigiu deles a aceitação incondicional da oferta e a mudança de comportamento para que se adequassem àquilo que acreditava estar à sua altura. Percebe que no fundo você não agiu por amor, mas por medo de que a vida deles afetasse a vida que tinha escolhido para si mesma? Então resolveu intervir nas escolhas alheias.

Você os queria, mas os queria diferente do que realmente eram. Queria apenas a parte boa ou o que o seu nível de consciência entendia como a parte boa.

Entende que, se caso aceitassem, eles perderiam a própria integralidade ou a autenticidade que tanto nos diferencia e encanta? De certa maneira, inconsciente ou não, você se imagina perfeita, pensa ser melhor que os seus namorados e, pior, ainda se aprisiona com as expectativas e opiniões do mundo sobre as suas escolhas e verdades. Com isso perde o mel da vida e tudo de bom que cada pessoa pode lhe proporcionar. A exigência pelo perfeito a impede de aproveitar o possível. Então, os anjos encerram a festa por descompasso no ritmo das canções”.

Lucy chorou muito e não disse palavra. Loureiro a abraçou com amor por longo tempo. Depois enxugou as lágrimas da irmã, a beijou na testa e falou com os olhos doces e a voz serena: “Não pode existir maior tolice do que o desejo de modificar os outros. Transformar a si próprio é tarefa que cabe a cada um de nós. Aprender, transmutar, compartilhar e seguir são as diretrizes; iluminar as próprias sombras é a batalha que nos aguarda. Agora é enxugar as lágrimas, cicatrizar as feridas e recomeçar. A vida não desistirá nunca de você nem impedirá a sua felicidade. Sempre existirá uma nova oportunidade”.


Curta nossa página no Facebook Compartilhar no Facebook


Voltar Adicionar aos Favoritos!


Todos Direitos Reservados - Acessibilidade em Foco ®